Fenomenologia da Incidência Tributária
1. Introdução
O estudo da fenomenologia da incidência
tributária insere-se no campo da Ciência do Direito Tributário e da
Economia Fiscal, tendo como objetivo compreender não apenas a ocorrência do
fato gerador do tributo, mas também todo o conjunto de relações, pressupostos e
efeitos que se desenvolvem desde a previsão legal até a concretização da
obrigação tributária.
Enquanto a incidência tributária, em sentido
estrito, é muitas vezes tratada como o simples ato de aplicação da norma
tributária ao fato ocorrido, a fenomenologia propõe uma abordagem mais ampla,
de natureza descritiva e explicativa, buscando revelar as dimensões
ontológicas, jurídicas e econômicas envolvidas no fenômeno da tributação.
2. Conceito de Incidência
Tributária
A incidência tributária é tradicionalmente
definida como a aplicação da regra-matriz de incidência tributária (RMIT) ao
fato jurídico tributário, transformando um evento previsto em lei (fato
gerador) na obrigação tributária principal.
No pensamento de Paulo de Barros Carvalho (2010), a
incidência é um processo lógico-jurídico de subsunção: a norma abstrata
encontra correspondência no fato concreto, gerando efeitos jurídicos.
Já sob o prisma fenomenológico, essa definição se
expande, incluindo a percepção de que o fenômeno tributário envolve uma série
de etapas:
- Previsão
normativa
(hipótese de incidência);
- Ocorrência
do fato no
mundo real;
- Subsunção
jurídica
(ato cognitivo de enquadramento);
- Constituição
da obrigação tributária;
- Exigibilidade
e arrecadação;
- Repercussão
econômica
(quem efetivamente suporta o ônus).
3. Fundamentos da Fenomenologia no Direito Tributário
A fenomenologia, enquanto método filosófico,
desenvolvida por Edmund Husserl, busca compreender o fenômeno como ele se
apresenta à consciência, descrevendo-o em sua essência. No Direito Tributário,
esse enfoque é adaptado para entender a manifestação concreta da relação
jurídico-tributária, indo além da dogmática normativa.
Aplicada à tributação, a fenomenologia busca
responder questões como:
- Quais
são as condições de possibilidade para que um tributo “incida”
efetivamente?
- Como
o sujeito passivo percebe e reage à obrigação tributária?
- Quais
distorções ocorrem entre a previsão legal e a efetiva arrecadação?
Assim, a fenomenologia tributária não se limita à teoria
pura do Direito, mas incorpora elementos de sociologia fiscal, economia e
comportamento do contribuinte.
4. Estrutura da Regra-Matriz e a
Fenomenologia
A Regra-Matriz de Incidência Tributária
(RMIT), segundo Paulo de Barros Carvalho, é composta por dois grandes blocos:
- Hipótese
de Incidência (critério
material, espacial e temporal)
- Consequente
Tributário
(critério pessoal e quantitativo)
A fenomenologia busca compreender não apenas essa
estrutura lógica, mas o processo dinâmico que liga esses elementos.
Por exemplo, no caso do Imposto sobre Circulação
de Mercadorias e Serviços (ICMS):
- Critério
material: circulação de mercadorias.
- Critério
temporal: momento da saída da mercadoria do estabelecimento.
- Critério
espacial: território do Estado.
Fenomenologicamente, não basta constatar a saída da
mercadoria; é preciso observar se houve emissão de nota fiscal, se o fato foi
captado pelo fisco, se o contribuinte reconheceu a obrigação e se houve
pagamento efetivo.
5. Dimensão Econômica da
Incidência
A fenomenologia da incidência tributária não ignora
a distinção entre incidência jurídica e incidência econômica.
- Incidência
jurídica:
quem a lei indica como contribuinte.
- Incidência
econômica:
quem efetivamente suporta o ônus financeiro.
Um exemplo clássico é o Imposto sobre Produtos
Industrializados (IPI). A lei atribui a obrigação ao fabricante (contribuinte
de direito), mas o ônus econômico geralmente recai sobre o consumidor final
(contribuinte de fato), por meio do repasse no preço.
Essa diferença é fundamental para a fenomenologia,
pois a percepção social da carga tributária nem sempre coincide com o texto
legal. Isso impacta na aceitação dos tributos, na evasão fiscal e na eficácia
das políticas tributárias.
6. Aspectos Jurídicos e Práticos
A fenomenologia da incidência tributária também se
preocupa com o descompasso entre norma e realidade.
Exemplos:
- Evasão
fiscal: o
fato gerador ocorre, mas não é declarado.
- Elisão
fiscal: o
contribuinte estrutura suas operações para evitar o fato gerador.
- Não
incidência:
situações fora do campo de aplicação da norma.
Além disso, a efetividade da incidência depende de
fatores como:
- Capacidade
administrativa do fisco (fiscalização, tecnologia).
- Clareza
normativa (segurança jurídica).
- Custos
de conformidade (compliance tributário).
Fenomenologicamente, a incidência só se completa
quando o fato gerador é identificado, juridicamente enquadrado, transformado em
obrigação e, por fim, satisfeito mediante pagamento.
7. Exemplos Concretos de
Fenomenologia da Incidência
- ISS
sobre serviços digitais: A lei prevê a incidência, mas a
fenomenologia revela dificuldades de apuração quando o prestador está no
exterior.
- ICMS
no e-commerce: a
operação é materialmente tributável, mas a complexidade da substituição
tributária e da partilha entre estados impacta a efetividade.
- Imposto
sobre grandes fortunas (previsto no art. 153, VII da CF): embora a
hipótese de incidência exista na Constituição, não há lei complementar que
a regulamente, logo a fenomenologia mostra a ausência de concretização.
8. Fenomenologia, Justiça Fiscal
e Políticas Públicas
A fenomenologia da incidência tributária também
contribui para a análise de justiça fiscal.
Ao observar quem realmente suporta os tributos, é
possível avaliar:
- Progressividade
ou regressividade do sistema tributário.
- Efeitos
distributivos sobre diferentes classes sociais.
- Distância
entre a política fiscal planejada e a efetivamente alcançada.
Esse enfoque é relevante para reformar o sistema
tributário, reduzindo distorções como a tributação excessiva sobre o consumo e
a carga relativamente menor sobre a renda e o patrimônio.
9. Conclusão
A fenomenologia da incidência tributária
amplia a compreensão do fenômeno tributário, indo além da aplicação mecânica da
norma. Ao integrar aspectos jurídicos, econômicos, sociais e administrativos,
permite identificar lacunas entre previsão e prática, contribuindo para um
sistema mais eficiente, justo e transparente.
Estudar a incidência tributária sob essa ótica é
essencial para legisladores, administradores fiscais e contribuintes, pois
possibilita a formulação de políticas tributárias mais coerentes com a
realidade econômica e social, aumentando a eficácia da arrecadação e a
legitimidade do sistema fiscal.
Referências
Bibliográficas
- ATALIBA, Geraldo. Hipótese de incidencia Tributária. V.8. Ed. Revista dos Tribunais, 1984.
- CARVALHO, Paulo de Barros. Curso
de Direito Tributário. 29. ed. São Paulo: Saraiva, 2020.
- DERZI, Misabel Abreu
Machado. Direito Tributário Brasileiro: Doutrina e Jurisprudência.
3. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2019.
- MACHADO, Hugo de Brito. Curso
de Direito Tributário. 39. ed. São Paulo: Malheiros, 2023.
- TORRES, Ricardo Lobo. Tratado
de Direito Financeiro e de Direito Tributário. Rio de Janeiro:
Renovar, 2010.
- HUSSELR, Edmund. Ideias
para uma Fenomenologia Pura. Lisboa: Edições 70, 2012.
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